NATAL INCÓMODO
Em minha
casa, o período natalício inaugura-se com uma ida ao campo, onde a família
apanha musgos e ramos de variada vegetação para com eles montar e ornamentar o
presépio. Se ainda é fácil encontrar a indispensável gilbardeira, com as suas
bagas vermelhas nascidas de folhas duras e espinhosas, vai sendo cada vez mais
difícil encher o balde com o tapete que há-de fingir um chão verde e fresco. Andamos
todos a pagar os desmandos da ignorância e da ambição desmedida e a Natureza
vai dando sinais muito preocupantes... Neste ano, quando chegou a altura de
colocar a imagem do Menino no lugar que lhe pertence, houve uma saudável
disputa entre as crianças. Quem teria a honra de colocar "O mais
importante" no seu lugar? Comoveu-me a solução encontrada pelos miúdos:
cada um pegou em seu braço e assim desceu ao centro a imagem mais pequena,
mostrando que o ínfimo pode bem ser expressão do maior, daquele que mais
importa.
Terminada
a “obra de arte” efémera, divulguei pelos amigos e conhecidos o resultado, não
resistindo ao exibicionismo ingénuo de que todos vamos sendo mais ou menos
vítimas incautas. Horas depois, ao abrir a minha caixa de correio, estavam lá
depositadas as palavras de um (verdadeiro) amigo. Sem vocativo nem despedida,
percebi que tinham sido escritas após a observação das fotografias do nosso
presépio. Não seria curial trazê-las para o domínio público, mas interessa-me registar
que elas me recordaram, picando-me, como se fossem um pampilho dos campinos
ribatejanos, o que mais importa no Natal: o ínfimo que alcança a suprema
importância.
Época
de alegrias, de felicidade - mas também de euforias fabricadas, manipuladas
pelo consumo -, o Natal leva-nos, frequentemente, ao esquecimento daqueles que
assim não sentem, travando diariamente uma terrível luta com a angústia, com o
vazio ou com o negrume, mal conseguindo esboçar um sorriso perante as agruras
da doença, do desemprego ou de uma dignidade perdida, tentando arranjar uma
réstia de ânimo para se levantarem da cama sabendo-se alvo de injúrias e de
incompreensões, querendo elevar o coração apesar de se verem sem tecto, sem
alimentos dignos, sem uma companhia ao lado ou à distância, sem os seus entes
queridos. Mesmo quando os lembramos nesta época de preparação para a festa do
nascimento de Jesus Cristo, tantas vezes os olhamos como grãos de pó que é
importante sacudir da lembrança, não vá ela ficar toldada (menos “alegre”) pelas
suas nuvens incómodas. E, no entanto, foi sobretudo para estes nossos companheiros
de existência que a encarnação do Divino Infante aconteceu e continua a
acontecer, enquanto recordação rediviva e actuante. Bem sei que esse
acontecimento milenar pouco ou nada interessa a uma sociedade onde o dinheiro é
deus e rei, mas a verdade não tem outro conteúdo nem a festividade outro
sentido, mesmo que o alheamento das luzes comerciais e financeiras nos tentem
virar o olhar para lugares distintos e sentimentos menos nobres. Esquecer o
sentido do Natal é esquecer tudo. Não há outro caminho. Ou somos incomodados por
ele ou não vale a pena comemorá-lo.
Nestes dias que nos conduzem à
tão desejada jornada, teríamos certamente vontade de ser um pouco subversivos
e, de uma vez por todas, substituirmos a correria pelas lojas por uma correria
por muitos daqueles que precisam da nossa presença ou, pelo menos, da nossa
palavra. De boas intenções está cheio o mundo inferior, pensarão... Muitos
temos compromissos familiares ou sociais e facilmente, nestas semanas e naquela
noite venturosa, esquecemos os que estão sós, sem ânimo ou com a sua dignidade
erodida. Não é fácil irmos ter com eles ou trazê-los à nossa presença. Não é
contudo difícil, no momento certo, marcarmos o nosso companheirismo com uma
palavra oportuna ou, até, com um gesto ou com uma mensagem que vá além daquelas
que mandamos por atacado a todos os nossos "amigos" que, tantas
vezes, nem conhecidos são na verdadeira acepção do vocábulo. Se calhar será
esse o momento mais alegre ou mais feliz da noite. O momento em que o Natal nos
incomodou. Creio que sim. Afinal o Paráclito é aquele que nos espicaça e
consola... (Espero, sinceramente, não ser como frei Tomás...)
RUY VENTURA