RECORDAÇÃO E
LOUVOR
DE CARLOS GARCIA
DE CASTRO
Repasso os livros que tenho de Carlos Garcia de Castro. Poderia
reler as muitas cartas que dele guardo; a distância não é todavia ainda
suficiente para delas me reaproximar. Não mudou de habitação assim há tanto
tempo; soube que já não mora na praceta d' "Os Lusíadas"; continua em
Portalegre, mas disseram-me que desde 2016 repousa noutro bairro, lá para os
lados da Boavista. Não conheço ainda a nova habitação do seu corpo; imagino-a
virada, contudo, para a casa de José Régio – esse escritor grande que, como ele
e mais alguns, soube topar os furúnculos da cidade, não tendo medo de
espremê-los com arte e frontalidade.
Repasso
os livros de Castro. Fitando as dedicatórias, descubro a melhor palavra para
designar os laços que criámos. Durante muitos anos, foi para mim apenas um
vulto, investido da cortante grandeza poética que transcendia a pequenez
bolorenta de muitos versos que então tentava ler. Aproximámo-nos, quase sem
querer, com o meu ingresso na Escola Superior de Educação portalegrense, onde
era professor. Quase no fim do curso, fui seu aluno nas lições de Cultura Portuguesa.
Gostava de dissertar a partir dos bons livros do padre João Mendes, cuja valia
nunca se cansava de enaltecer, mesmo sabendo que não era um autor da moda e
perante a estupefacção dos ouvintes, com preocupações situadas a anos-luz das
suas. Com gargalhadas súbitas, ironias surpreendentes e certeiras e uma rara
profundidade nos raciocínios, partindo sempre de uma atenção cirúrgica, as suas
aulas tornavam mais real a etimologia do termo francês élève (aquele que é elevado espiritualmente pelo seu mestre, o qual
admira sem lhe lamber as botas). Alguns alunos interrompiam-no, picando-o (eu
era um deles). Nunca nos mandava calar, embora o merecêssemos. Assumia com
bonomia as provocações e respondia-lhes com a melhor doutrina, sem afastar a
humildade. Mais tarde, sendo eu já docente na Grande Lisboa, confessou-me o que
pensava nessas ocasiões. É para mim matéria reservada, de proveito e exemplo.
Foi nessa altura que, estando eu a terminar a minha licenciatura, me ofereceu o
conselho que modelaria o meu futuro. Tirando à pílula toda a folha de ouro,
retratou-me com a maior dureza a sociedade da nossa terra natal, antevendo o
que me sucederia caso aí permanecesse. Sabendo-me aldeão afastado dos ambientes
da burguesia local, incitou-me à migração. (Quando um convite, passados anos,
me levou a um breve regresso, não o aceitei sem antes lhe telefonar. Repetiu-me
os avisos, sem me tirar a esperança. Optei, à sua revelia. Dois anos passados,
vi-me obrigado a dar-lhe razão.)
Do
primeiro ao último livro que me dedicou, designou-me sempre do mesmo modo:
"companheiro", "compagnon de route"... Só agora me
apercebi disso. Nesse companheirismo, aprendi a manter sempre a minha
independência fosse perante quem fosse, a caminhar sem vergar nem perder a
coluna, a ser católico sem hipocrisias nem beatices, a não me misturar
demasiado com o chamado meio literário,
a sobreviver no ambiente escolar e docente com ardilosa distância e empático
humor. Não me deixou pequena herança.
*
Fosse
Portugal outro país e a classe literária lusa de outro quilate e há muito teria
já reconhecido Carlos Garcia de Castro como o poeta maior que é, sublinhando
nomeadamente a sua aproximação ao quotidiano, numa linguagem certeira e tersa
que nunca abandonou o apuro formal e estilístico, surpreendente nas suas
imagens. Por ali surge, como trama oculta ou discreta, a transcendência do
mundo e das relações humanas, que não dispensa as três dimensões do Amor: a
amizade, a conjugalidade/sexualidade e a divindade. Quando outros ainda nem
balbuciavam, já Castro tomava e transmitia muito melhorado o testemunho
imagético e estético de Cesário Verde e Pessoa-Caeiro, aproximando a poesia de um
real multiforme. Nunca foi, todavia, um criador de micro-narrativas em versos
empilhados. Num impressionismo arguto, soube casar alguns pontos luminosos da
tradição surrealista com um olhar lúcido sobre o seu entorno, sem deixar que a
coloquialidade de uma parte substancial da sua linguagem fosse obstáculo à
presença do sobrenatural, pobremente vestido, quase franciscano. Quanto recorre
à memória, fá-la recordação e não apenas lembrança; combatendo toda a espécie
de derrames sentimentais, trá-la ao coração para que seja fonte luminosa de atenção,
de rigor e de esperança.
Como
“escravo […] das coisas naturais, /
amante do concreto entre poetas / para quem não é enigma o arco-íris”, a
poesia e a figura de Carlos Garcia de Castro merecem ser enaltecidas. Cidadão
vertical, soube dissecar a sociedade, o estatuto que aí mantêm os seres humanos
e os papéis nela desempenhados (entre a fidelidade, a subversão e a
hipocrisia). Usando uma métrica regular, em versos brancos, não apagou dos seus
poemas a metafísica, mas tornando-a subjacente, quase subterrânea, focalizou de
preferência a physis e os jogos de
poder, de dependência, de alienação, de simulação, de liberdade e de autonomia
que dirigem e governam o devir do nosso mundo. O contraponto está numa subtil
evocação da doutrina em que a criatura, sempre imperfeita, é reflexo do Criador.
A
ironia – “ingrata” e “traiçoeira”, como dizia, mas geradora
dos “melhores efeitos em Literatura”
– fez parte da sua estratégia de sobrevivência. Ao contrário de tantos outros,
o autor de Rato do Campo escreveu “não-poemas”, ou seja, textos cuja
finalidade sem fim foi, em grande parte, não encantar, efabular ou idealizar o
meio social, doméstico e objectual, mas antes desencantar, esquadrinhar e virar
do avesso, zurzir as redes que nos envolvem, modelam e, tantas vezes, aprisionam.
Usando um raciocínio de cariz filosófico – ou mesmo histórico e sociológico –, quantas
vezes meditativo, o sujeito poético pensa-se, pensa o seu meio e pensa-se nesse
meio. E daí nascem poemas – ou “anti-poemas”
(Nicanor Parra) – como quem entrança canastras: colhendo a matéria da natureza,
entrelaçando com um braço artístico forte os ramos de castinceira e formando um
recipiente duradouro, capaz dos mais pesados transportes – exactamente o
contrário dos contentores de plástico, incapazes de deixar passar o sopro da
leitura, de uma leitura infinita (aquela que nos conduz ao Paraíso).
Na
matéria, “utilitária e banal”, se
mostra “enredada / – a Natureza”. Aí
se revela, surpreendente, “o mistério das
madeiras limpas”, o mesmo é dizer das matérias depuradas que todo o
verdadeiro poeta procura alcançar.
RV
(Artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", a 14/11/2018).