O PEIDO-MESTRE



Deve ser da idade, mas nos últimos tempos, sabe lá Deus porquê, tenho pensado muito naquela frase que, segundo se conta, era dita aos ouvidos dos pontífices romanos antes de tomarem sobre cabeça a tiara papal: "Sic transit gloria mundi", o mesmo é dizer que "assim passam as glórias do mundo". Nem tenho reflectido muito sobre as rasteiras da vida que a todos calham e nos fazem ir, prosaica e humildemente, com as ventas à lama. Está certo que vivemos num ambiente social e cultural que abomina as derrotas, camuflando-as, e por isso é, sem dúvida, um mundo dominado pela frustração, sobretudo quando mais alardeia vitórias, frequentemente de Pirro. Daí os narcóticos de vária espécie que nos vão envenenando desde tenra idade... É bem verdade que, neste tempo que nos calhou andar, temos de sentir na pele o quanto há de vaidade inútil nas nossas atitudes - sob pena de nos tornarmos perus de papelão, inchados, mas vazios e sem conteúdo, que qualquer chuvada transformará em pasta de papel sem serventia nem para a reciclagem. Mas não tem sido sobre isso que tenho congeminado.
Ao vir-me à memória a frase romana, tenho pensado sobretudo na morte ou, para vermos a coisa com alguma bonomia vocabular e um sorriso no rosto, no peido-mestre, como lhe chamam alguns alentejanos, entre os quais me incluo. Ver dar o peido-mestre, ir fazer tijolo, bater a bota ou entregar a alma ao Criador (tanto dá...) transmite-nos fortes ensinamentos que levamos meia-vida a ruminar, sem desconfiarmos onde estará o instante em que seremos nós o presunto a finar-se.
Já tenho a minha conta de confrontos com a moçoila da gadanha. Desde dois vizinhos da aldeia que me morreram, literalmente, nos braços, a dois parentes que vendiam saúde até ao momento em que a aguardente bebida lhes cobrou o bilhete de ida-sem-volta, passando por quatro ou cinco casos de ambiciosos e velhacos, que tudo queriam dado arregaçado ou mesmo sonegado, infernizando a vida a meio-mundo, família e vizinhança à cabeça, até ao dia em que se viram confinados a três badaladas no sino, três quartilhos de cal, meia dúzia de tábuas de pinho e uma mortalha sem força para travar a bicharada numa cova de pouca largura ou as chamas do crematório que (cá entre nós) bem deveria lembrar-nos os tratos de forno que o Adolfo alemão do bigodinho dava aos seus bem-odiados judeus e opositores.
De que vale andarmos a esgadanhar e a rasteirar os outros, arranhando a própria cara, cobrindo-a por vezes de lama ou de sangue sujo, se levamos todos a mesma volta? Os privilegiados ainda têm tempo de se arrepender do mal que fizeram (e todos vamos fazendo algum), partindo em descanso sabe Deus para onde. Os outros, nem isso... que hoje está fora de moda pedir ao sacerdote os últimos sacramentos. Sou, por isso, um mitigado e pouco fiel adepto de algumas páginas de Séneca que, avisado, nos aconselhava a bem vivermos cada momento como se fosse o último. "Ninguém sabe a que hora virá o ladrão", aconselhou-nos outro Mestre, com saber supremo e numinoso. E nós, aprendemos? Somos e seremos sempre os mesmos burros teimosos... quiçá mulas, que são bicheza híbrida que não se reproduz. E tal, convenhamos, não é bom para ninguém. Sobretudo se morrermos de barriga cheia, à custa da magreza ou das arrelias dos outros... A não ser, claro, que queiramos ser recordados pelos sonoros arrotos (reais ou simbólicos) que dávamos em público... Cada um lá sabe. É certo que a morte lava mais branco que o detergente da máquina e "se queres ser bom morre...", mas atrás de tempos tempos vêem e é conveniente deixarmos por cá uma famazinha que vá além do incómodo epíteto de "ruins pesetas", para pelo menos não envergonharmos a descendência física ou espiritual.

Ruy Ventura

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