UMA FÁBRICA DE DESIGUALDADES
"Ainda
bem que já estou de férias!”
A
frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é um
rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia,
passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para
minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e
eu temperava a salada.
“Até
que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro a fazer
projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros ficavam a
ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava bem feito
ou não, se tinha sido copiado da internet ou escrito por nós... Além disso, eu
pensava que os projectos eram para fazermos coisas
úteis, giras... O nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas
silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse coisa alguma, do alto dos seus onze
anos, não teve papas na língua:
“Os professores andam aborrecidos.
Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como querem e não têm tempo para
dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a mania das disciplinas
semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o que está a acontecer. Dizem
que para o ano que vem as aulas vão ser todas assim. Só projectos e trabalhos
de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai dar... Mas nem quero pensar
muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que as aulas normais voltassem e
acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
Perguntei-lhe se era o único a
pensar assim. Poderia ter chamado a irmã, avançada um ano nos estudos, mas quis
saber o que ele me responderia.
“Não sou o único a dizer isto. Os
meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não se importam com nada é
que andaram contentes porque não precisaram de fazer nenhum. Trabalham uns e
eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda a gente, porque sabem
que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano nesta escola, mesmo que
faça porcaria e não aprenda. A directora diz que chumbar dá mau nome à
escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
A interrogação final veio de chofre:
“Achas justo? É justo dar o mesmo prémio àqueles que trabalham e àqueles que
não se ralam e não querem trabalhar?”
A opinião do catraio não me apanhou
desprevenido, confesso. Já ao longo do ano lectivo notara um certo desalento no
miúdo quando se aproximava o dia das “aulas diferentes”. Ia como cão por corda
para a escola. A irmã, tanto quanto me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo
sentimento. Em conversas com outros pais e encarregados de educação, das suas
turmas e de turmas diferentes, fui-me apercebendo de que era um sentimento
alargado. Também conhecia a opinião de um grupo alargado de professores daquela
escola. Ano após ano, várias dezenas tinham saído da instituição, mesmo
tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas de serviço e dedicação. Muitos dos
que permanecem no “degredo” desejam, dizem, seguir o mesmo caminho, perante as
atitudes da tutela e da gerência. Pura e simplesmente, não aguentam – segundo
afirmam – as pressões diárias de que são alvo para porem em prática uma
“doutrina pedagógica” com traços totalitários.
Não foi inesperado o desabafo do
miúdo. Mas deixou-me porém preocupado, sabendo eu o que é possível fazer e desfazer
com os cinquenta por cento de autonomia que o governo quer “oferecer” às
escolas, em troca da aplicação cega e militante da “flexibilidade curricular”.
Também eu sou professor, embora tenha a graça de leccionar num Agrupamento de
Escolas onde ainda vai reinando o equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade
humana. Como docente, consigo todavia ser camaleão, se for necessário. Como
pai, a minha grave inquietação vai crescendo.
Com as mãos livres e acalentadas
pela 24 de Julho, há dirigentes escolares que estão a pôr em prática uma
autêntica anarquia educativa, travestida contudo pelas melhores intenções, que
não passam de vassouras para esconder os problemas que existem na nossa escola
pública. E não lhes faltam coadjuvantes ou cúmplices: alguns docentes que esperam
receber benesses (no horário, na distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao
estrangeiro, pagas pela União Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo
à frente do nariz. Bom seria que alguém verificasse se os dirigentes escolares
mais ferrenhos na aplicação da nova via “pedagógica” não serão muito próximos
do partido do governo (ou mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é
por acaso que, para estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos
secretários de estado do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na
inauguração (!) da remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de
uma das escolas mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há
almoços grátis, como se diz por aí.
Vítimas de teorias e práticas
pedagógicas que já eram velhas há quarenta anos atrás, porque lhes dão jeito
para camuflar o insucesso que realmente existe e continuará a existir por este
caminho, há escolas (e cada vez são mais) que vivem um autêntico PREC
educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas consequências plenas são
ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia evidente. Os alunos com bom
respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo isto, com grande dispêndio de
tempo e de dinheiro, que não há outro modo de compensar o que lhes é tirado
nessas escolas públicas. Alguns, filhos de agregados mais abonados, partirão
para bons colégios privados – onde a conversa é outra… Aqueles a quem falta o
dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão vítimas a médio prazo de uma
escola que, assim, se demite de lutar contra as desigualdades, em benefício de
uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão social ao longo da vida.
Os colegas dos meus filhos que não
fazem testes de avaliação, que se alegram por passar de ano sem trabalhar e sem
melhorar o seu comportamento, que deixam de ter aulas baseadas no conhecimento
sólido dos seus professores, que não são treinados para o esforço que o estudo
implica e implicará sempre, que são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”,
poderão agora exultar com as suas famílias, alheados do que se passa, do que
motiva esta “nova pedagogia” e dos seus resultados futuros. Estou certo disso,
porque os vejo, os ouço e converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros
não serão, todavia, algo que seja bom de ver. Sem se terem habituado à
exigência, ao trabalho, à atenção, à concentração e ao estudo – enganados por
sereias maviosas e sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a
escola rumo ao sucesso” – ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante
desigualdade de oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender
a dignidade de todos os seres humanos.
Ruy Ventura
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