VÊM AÍ OS BÁRBAROS
Reaccionários.
Retrógrados. Fascistas. Racistas. Estúpidos. Bestas. Cavalgaduras. Monstros.
Energúmenos. Bárbaros. Não há adjectivo vil que os nossos inimigos não mereçam.
Para quê esgrimir argumentos com eles? É preciso calá-los, seja de que modo
for. Se as mordaças mais subtis não funcionam, há que vergá-los à bengalada, à
pedrada, à bastonada, se for preciso à catanada. A lei e a esperteza não
aconselham o castigo físico? Então é preciso violentá-los, demolir a sua imagem
pública, assassinar-lhes o carácter, apagá-los, usando e abusando dos melhores
púlpitos existentes na praça pública. São guaritas de onde se podem apontar
armas, que as palavras e as imagens são munições letais. Não são nossos adversários
e, por isso, não merecem respeito. São inimigos. Não passam de obstáculos que
tentam impedir o percurso das nossas máquinas de arrasto. Querem impedir a
abertura de vias de sentido único que, a bem ou a mal, hão-de transformar todos
os cidadãos em gente “cosmopolita”, “moderna” e “progressista”, sem
“preconceitos”. E isso não podemos permitir.
Ninguém precisa de fazer
grande coisa para merecer o estatuto de inimigo, mais ou menos público. Nem é
preciso ser ferrenho adversário do “progresso” e da “evolução civilizacional”,
militando contra a necessidade de algumas “mudanças de mentalidade”. Basta
duvidar. Basta fazer perguntas chatas ou incómodas nalgum lugar ou de alguma
forma. Basta servir de “advogado do diabo” e pôr os seus ouvintes ou leitores a
pensar. Basta, aliás, pensar pela sua cabeça e ter a veleidade de exprimir o
seu pensamento. Na melhor das hipóteses, haverá sempre algum sósia daquele
agente da PIDE que, nos tempos áureos da caquética senhora, dava bons conselhos
aos presos, revestindo as suas palavras do melhor senso: “Para que anda o amigo
metido nestas coisas? Tem opiniões? Diga-as à sua mulher, debaixo dos lençóis.
Converse com os seus botões. Mas não cante de galo nos cafés. Evite essa mania
de escrever nos jornais… Não se meta em políticas…” Na pior, terá doravante a
vida negra, a não ser que alguém lhe guarde bem as costas.
Nos tempos que correm, os
inimigos já não são apenas gente diferente, com outros costumes, outra
aparência (considerada “feia”), outros odores (inevitavelmente “fétidos”), com
atitudes e costumes estranhos, ditos “incompreensíveis”. Tal percepção
manipulada e manipuladora, bem analisada por Umberto Eco em 2008, serve
sobretudo para a identificação de bodes expiatórios “numa sociedade que […] não
consegue já reconhecer-se” e, por isso, recusando encarar os verdadeiros
problemas que a vão corroendo, precisa de encontrar “um obstáculo em relação ao
qual seja medido o [seu] sistema de valores”. Nesse “inferno na Terra” que a
humanidade vai construindo ao desfigurar o Outro, ninguém está livre de se ver transformado,
de um momento para o outro, num alvo a perseguir e a abater. Basta não alinhar
em carneiradas. Basta ter a coragem de vociferar que o rei vai nu ou possuir,
pelo menos, a capacidade de apontar em público as contradições, as falácias, as
consequências nefastas ou o retrocesso ético e moral dos caminhos mais apontados
e seguidos.
Ninguém ignora o que vai
sucedendo na praça pública ao bom nome de quantos apontam semelhanças entre o
sistema de quotas na política e a pretérita “Câmara Corporativa” da
constituição de 1933, dos que se opõem ao revisionismo histórico, daqueles que
são contra o aborto ou a eutanásia, dos que denunciam o tráfico de influências
nas mais diversas instâncias do país, de quantos têm posto à vista o nepotismo
e a endogamia que rasuram a igualdade de oportunidades, dos homens e mulheres que
não confundem a ecologia com a imposição de estilos de vida, dos cidadãos que
vão pondo a nu a erosão do mundo rural e da sua identidade, das vozes que
afirmam ser a “discriminação positiva” em muitos domínios uma recusa da
valorização do esforço e do mérito e um ataque à igualdade de oportunidades, de
quantos continuam a defender que todos os cidadãos são iguais nos seus direitos
e nos seus deveres, seja qual for a sua origem, a sua residência, a sua cor, o
seu estatuto económico e social ou a sua identidade cultural. Neste momento da nossa civilização, em
que “Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem”, é
frequente vermos os promotores, conscientes ou inconscientes, da barbárie e os
seus acólitos qualificarem os outros como “bárbaros”. Sempre que “o inimigo não
existe, há que construí-lo”, como bem viu o autor de Cinco Escritos Morais. Erodida ou destruída a hierarquia de
valores, é mais fácil reinar estando o mundo dividido e, sobretudo, confundido
e confuso. Há quem tenha consciência disso e dessa via tortuosa e esburacada se
aproveite.
Continua actual a análise
apresentada há uns anos por Agostinho da Silva. No seu ensaio “Bárbaros à
Porta”, publicado n’ As Aproximações,
avisou-nos de que “[…] a língua do verdadeiro entendimento, da fraternidade, da
convivência, das ideias mais sugeridas que impostas […]; a língua, quase diríamos
de silêncio, que levava a que se entendessem os espíritos sem que de mais
vibrasse o ar, vai sendo cada vez mais sufocada pelos que sabem gritar […]; a
época é de vitória para quem empurra e clama […]”. Segundo o filósofo, essa
barbárie – de braço dado com as mais variadas formas de gritaria e de ruído,
num mundo em que “tudo o que não for compreendido será destruído” – “não se
caracteriza nem por uma raça nem por um credo: é uma forma generalizada de
comportamento humano. E todas as circunstâncias são de molde a favorecer a sua
vitória: uma vitória temporária, mas que pode durar séculos”.
A razão está portanto do
lado daqueles que têm apontado no nosso tempo e no nosso espaço uma muito grave
erosão da democracia, logo da dignidade da pessoa humana. Para aquilatarmos o
que está a suceder, já não chega identificarmos e arrolarmos as mais habituais
formas de exclusão económica e social. Temos de saber identificar e expor em
público aqueles que as exploram e, dizendo combatê-las “generosamente”, antes contribuem
para a sua manutenção transfigurada por muito mais tempo, ao manipularem as
legítimas expectativas dos seus semelhantes, transformando-as em material de
construção de um poder discricionário. Não têm qualquer intenção nem vontade de
resolver seja o que for. Tudo tem, na sua estratégia, o mesmo valor
instrumental. Os outros, sejam eles quem forem, não passam de degraus que
pretendem pisar e subir o mais depressa possível e sem quaisquer atropelos pelo
caminho. Nem que seja espezinhando a cabeça daqueles que ousarem levantá-la. Nem
que seja qualificando como “bárbaros” ou inimigos, sem direito à cidadania
plena, todos quantos atentarem contra o seu desejo de domínio ou de manipulação.
Ruy Ventura
(Editado no jornal Público, edição on-line, a 19/07/2019.)
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